Os pedaços de mim
que num passado pouco longínquo poderiam ter sido deixados para trás, perdidos,
junto às pedras da calçada, estariam agora a reencontrarem-se. Estariam a
tentar unir-se de novo, tentando formar um novo eu, um eu mais feliz, tal e
qual um puzzle novo nunca visto. Contornando os pequenos dissabores que o vento
nos trás e que nos deixam um sabor agridoce e duradouro no céu-da-boca, tento a
todo custo reunir cada pedacinho perdido que deixei escapar por entre os dedos
o mais depressa a que me permito, antes que alguém descubra o meu pequeno e
único esconderijo e me destrua o puzzle, mesmo antes de este estar terminado.
Sinto-me uma ditosa
por vezes, ao reparar que estou rodeada por pessoas que amo, e que sei também
me amar… Saber que tenho uma vida minimamente estável e que tenho a sorte de
poder partilha-la com um rasto de amigos verdadeiros, confiáveis. Mas é neste
momento que o medo entra… entra e destrói grande parte da esperança que me
possui, enfiando-se na minha cabeça e deixando-me desarmada emocionalmente. Medo
que num simples ato de burrice ou mal entendimento acabe por perder tudo de bom
que tenho.
Estava tão embrenhada nos meus pensamentos que me deixei desligar, como se me faltasse os sentidos. Deixei de ouvir o típico barulho inquietante da cidade, a água a bater descompassadamente contra o barco, o barulho dos seres vivos que nos envolviam naquele fragmento de espaço – escuro devido à falta de luminosidade – e até o barulho do motor do pequeno barco que até então permanecera ligado. Tudo permanecia longe da minha cabeça. Estava vazia - e ao mesmo tempo tão lotada.
Recuperei os meus sentidos e fui sugada do meu transe com o toque de David nas minhas costas. Estava agora ao meu lado sem eu ter dado pela sua presença.
- ‘Cê acha que está
bom aqui? – Questionou-me em voz baixa, relativamente ao lugar ao qual elegera
para parar a fim de passar-mos um tempinho juntos, diferente do habitual.
- Está ótimo. –
Rematei assim que olhei todo o espaço e conferi que não haveria perigo de
sermos vistos ali por alguma pessoa indesejada. – Acho que aqui não saímos nas
revistas…. – Sorri-lhe e ele olhou-me nos olhos, logo depois de se ter sentado
ao meu lado.
- Ainda não te
habituas-te a isso né? – David estava agora mais sério e não queria de todo que
esse assunto nos estragasse a noite.
- Habituar a quê? –
Baixei o olhar. Preferi passar por desentendida pois tinha medo que desta
conversa pudesse surgir uma discussão, e isso era tudo o que não queria que
acontecesse nesse momento.
- Habituada a ver a
sua vida nas revistas… - David falou calmamente, mas sentia que dentro dele
nada se mantinha calmo. Contudo, estava completamente indecifrável.
- Oh David… -
Aquele não era o momento para ter essa conversa, ou talvez fosse. Não sei…
talvez não houvesse um momento certo para falarmos das coisas que nos
atormentam ou simplesmente que nos põem nervosas. E eu estava sem dúvida a
ficar nervosa.
- ‘Tá tudo bem… só
estou perguntando. – David cruzou os braços e olhou-me esperando que lhe
respondesse à pergunta. Respirei fundo e comecei a falar.
- É óbvio que não
estou habituada, até por porque isso não tem acontecido… - Pronunciei
calmamente. – Quer dizer, na verdade nunca aconteceu desde que nos tornamos
namorados, o que não foi á muito tempo….
- Eu sei…. – David
estava mais seco no tom que falava, e isso não me agradava minimamente.
- Não, não estou
habituada e nem sei se virei a estar. Nunca tive a minha vida exposta dessa
maneira e isso começar a acontecer assim de repente não me agrada, de todo.
- Então não te
agrada estar comigo, é isso? – Custou-me a ouvir aquela acusação sem nexo
algum, o que me despoletou uma sensação angustiante no peito.
- O quê? – Olhei-o
incrédula e sem saber o que haveria de dizer. Mesmo que em pouco tempo, nunca
lhe havia dado motivos para pensar dessa forma. – Não é nada disso David! Tu
sabes que eu te amo, não percebo essa acusação!
- Não é acusação.
Só quero ficar esclarecido… - Era a primeira vez que nos via a iniciar uma
discussão assim e não queria que isso acontecesse, pois sabia que se deixasse
isso continuar tornar-se-ia algo constante nos próximos tempos. Sempre foi
assim nas relações e com certeza está longe de mudar.
David continuava á
espera que falasse, e por isso mirava-me. Eu olhava-o e perguntava a mim mesma
o porque deste assunto, o porquê desta espécie de insegurança por parte dele.
Não queria continuar com aquilo, afinal encaminhei-o até ali para que passasse-mos
momentos alegres juntos e não de insegurança e desalento. Deixei-me ficar em
silêncio e fui-me sentar na parte da frente do barco. Há algum tempo que havia
adotado o silêncio para suprimir as discussões e cobrir as feridas que certas
palavras provocavam em mim. Não queria discutir com ele e por isso guardei para
mim a sua frieza e deixei-me ficar a olhar o rio.
- Vais fugir à
conversa agora? – David viera atrás de mim e deixou-se ficar junto á minhas
costas - bem perto - mas não tanto ao ponto de me tocar e deixar-me ceder aos
seus encantos. Queria ter aquela conversa, e a verdade é que não tinha razões
plausíveis para acabar com ela.
- Não quero
discutir contigo David. – Pronunciei sem me mexer, e a voz saiu-me mais fraca
do que desejava. No fundo sentia-me magoada por aquela acusação, mas a vontade
de me amarrar a ele era mais forte do que isso, mas ele não me iria receber de
braços abertos. Não sem antes colocarmos um ponto final na conversa.
- Então não fuja à
conversa e me responda…
Virei-me para ele e
encarei-o. - Que queres que te diga David? Claro que me agrada estar contigo!
Eu só não quero ser capa de revista. Não quero ser a «nova amiga do David Luiz» que foi a tal lado com ele! É óbvio que
não quero! – O meu auto-controlo estava cada vez mais difícil de se manter e o
meu tom de voz já subia outra fasquia.
- E você por acaso
acha que eu quero isso? Que eu escolhi isso? Eu também não quero a minha ou a
vida de minha namorada colada em revista cheia de fofoca falsa!
- Então porquê isto
David, porquê? – Não entendia o porquê de estarmos a discutir se estávamos de
acordo em não querer a nossa vida exposta dessa forma.
- Porque eu não
escolhi, mas tenho que lidar com isso! E desde que você aceitou ficá’ comigo
sabia que estava a aceitar isso também! Pelo menos eu pensava que sim… - David
também ficara mais exaltado e, depois de suspirar, vi os olhos deles largar os
meus para abarcarem a paisagem.
- Pois, mas não é
necessário lidar com isso agora, tão cedo!
- Não? Então vais
lidar quando? Quando não aguentares mais andar às escondidas? ‘Cê não entende!
- O que é que eu
não entendo? Diz-me, o que é? – Estava a passar-me completamente com esta
conversa e cheguei mais para perto dele e olhei-o nos olhos. – Fala.
- Não entende muita
coisa… muita coisa… - Não demorou muito para que desviasse o seu olhar do meu e
se afastasse.
- Tu é que não
percebes que só quero a minha privacidade! Mais nada!
Ele voltou a
encarar-me. - Eu daria minha privacidade por você.
Aquelas palavras
caíram como um murro no estômago que não pude evitar. Elas assentaram em mim
tão bem que quase sorri ao perceber a enormidade dos seus sentimentos. Não que
eu não sentisse o mesmo, porque sentia… mas não me via pronta para dar um passo
tão grande assim, mesmo que no início pensasse que fosse mais fácil passar por
isso. Não, não me parecia pronta. Afinal, passaram-se pouco mais de um mês que
namorava com David, será que ele não percebia isso? Será que não entendia que
seria tudo muito repentino?
Não sabia o que fazer
ou… raios! Não sabia sequer o que dizer.
Senti as pernas fraquejarem e percebi que os meus pulmões já sustentavam o mesmo oxigénio há algum tempo assim que ele se aproximou de mim – demasiado para o meu belo auto controlo – e segurou uma das minhas mãos.
Senti as pernas fraquejarem e percebi que os meus pulmões já sustentavam o mesmo oxigénio há algum tempo assim que ele se aproximou de mim – demasiado para o meu belo auto controlo – e segurou uma das minhas mãos.
- Eu, com certeza daria
minha privacidade por você. – David sorriu torto e olhou a minha mão segura
entre seus dedos. – Eu até daria tudo por você…
- David não… - Ele
interrompeu-me mesmo antes de eu ter formulado uma frase sólida na minha
cabeça, largando-me num instante como se acabasse de despertar de algum tipo de
hipnose dolorosa.
- Esqueça mesmo… -
Ele falou rápido, levantando a mão num gesto de “deixa p’ra lá” que me irritou profundamente. – Você própria disse
que não quer lidar com isso. Feita uma egoísta.
- Ai eu é que estou
a ser egoísta? Porquê? Porque agora decidiste passar para a parte dos insultos
ou tens alguma explicação melhor?
- É, egoísta você.
E nem consegue perceber isso!
- Claro que não
consigo perceber isso, porque simplesmente: eu-não-sou! Ninguém é egoísta por
querer manter a sua privacidade e até a privacidade do namorado David! – Disse
totalmente exasperada, deixando cair os braços contra a cintura.
- É egoísta sim, e
você no fundo sabe isso! Egoísta porque só está a pensar em você mesmo… Está a
pensar o que é melhor p’ra você e só p’ra você! Não está pensando em mim porque
eu já não tenho privacidade no meu dia-a-dia. Está vendo o que é melhor p’ra si
mas não o que é melhor p’ra mim, p’ra nós dois! Está nem aí para o que é melhor
p’ra mim!
- Como podes dizer
isso? Claro que estou a pensar no melhor para nós os dois! – Falei tentando
engolir as palavras dele aglutinadas na minha garganta, sabendo terem uma ponta
de verdade, mesmo eu não estando a avistar.
- Não, não estás!
Nem entendes o que preciso! – David soltou de rajada, também já cansado pela
conversa que parecia não ter fim nem entendimento. Ele sentou-se e eu levantei
as mãos em sinal de incompreensão. Era verdade, estava cada vez mais difícil
perceber o que ele quer dizer.
- Então diz-me,
porra! Diz-me do que precisas… - David olhou-me enfurecido e sorriu
ironicamente.
- Preciso de ti! –
Disse tentando fazer-me entender com o olhar a sinceridade desapacientada das
suas palavras.
- Mas eu estou
aqui. Sempre estive aqui. Eu… - Suspirei e olhei-o nos olhos. – Eu sou tua…
- Estás aqui agora,
mas por quanto tempo mais? – Ele levantou-se num ápice e chegou-se a mim. – Eu
preciso de ti além das horas assistindo filme no sofá da sala. Preciso de ti
mais do que durante aquele tempo em que te posso ver dormir em minha cama.
Preciso de ti mais do que jantares em casa. Preciso de ti fora de quatro
paredes!
Eu fiquei estática
mal aquele olhar intenso se encontrou com o meu e me deixou sem fôlego
acabando com a minha vontade de fugir de perto dele para não cair na tentação
de me perder nos seus braços. Apetecia-me gritar que não podia ser, que eu não
me queria entregar assim dessa forma às bocas mais perversas do mundo. Queria
gritar que tinha medo de tudo o que isso me pudesse trazer, ou pior, tirar. Mas
não conseguia. As minhas cordas vocais há muito que se renegavam a tremer por
pouco que fosse, deixando-me com a boca seca e o coração acelerado. Ele estava
a colocar aquele dissabor em cima da mesa
para mim, para que eu percebesse que ele não queria assumir tudo, ele
precisava.
- Cê não imagina…. Cê
não entendo do quanto preciso me sentir… eu só quero poder agir normal, sem
fingimentos! Quero poder sair de casa ao seu lado e poder pegar sua mão sem
problema de sair na revista do dia seguinte, quero podê abraçar você sem ter
que disfarçá, quero andar com você no passeio e deixar o casaco de capuz em
casa. Quero... – David parou de falar e colou-se junto a mim, deixando-me
totalmente perdida. – Quero podê fazer isso…
Pronto, estava
definitivamente perdida. David beijara-me devagar, prendendo a minha nuca com a
sua mão - demasiado quente para a minha saúde mental não se perder – e eu
deixei-me levar pelo sabor a menta que os seus lábios macios me faziam sentir.
Por um momento deixei de pensar, deixei que todos os motivos de pensamento
bloqueassem e permiti a mim mesma disfrutar daquela sensação de bem-estar que
eu tanto adorava quando estava nos seus braços.
- Sempre que eu
quiser, onde eu quiser… - Sussurrou junto aos meus lábios e eu estremeci
voltando a mim, enxovalhando-me e obrigando-me a pensar de novo. Eu estava
chateada. Ele estava chateado. Nós estávamos a discutir. Calar-me agora ou
voltar a beija-lo seria estar a aceitar e concordar em assumir tudo, que aquilo
era o certo… mas porra(!) eu queria beija-lo de novo.
- Ahn, é… é melhor
irmos embora… - A voz saiu-me muito mais fraca do que eu esperava, dando conta
de que a minha respiração estava mais acelerada do que nunca naquela noite.
Virei-lhe costas
com receio e dirigi-me para o outro lado com intenção de ligar o motor e pôr-me
a andar dali p’ra fora. Quer dizer, por os
dois a andar dali p’ra fora.
Mas mesmo antes de conseguir sequer pensar em como se ligava aquilo sem fazer figura de parva, tropecei numa corda e se não fosse os braços de David a amarrar-me teria caído e congelado naquela água totalmente gelada.
Mas mesmo antes de conseguir sequer pensar em como se ligava aquilo sem fazer figura de parva, tropecei numa corda e se não fosse os braços de David a amarrar-me teria caído e congelado naquela água totalmente gelada.
Ele apertava-me
forte, deixando o meu rosto entalado contra o seu tronco como se tivesse medo
de ainda não estar segura e cair dos seus braços de novo. Vi um duplo sentido
no que acabara de pensar e suspirei tentando a todo custo acalmar-me para
construir as barreiras necessárias para que fosse possível soltar-me dele. Mas
não conseguia. No fundo até eu sabia que a melhor maneira de me acalmar era continuar
ali junto a ele, encostada a ele. Deixei que o meu orgulho – muito pouco bem
empregado naquela situação – se evaporasse e fui envolvendo o seu tronco a medo
com os meus braços. Senti-o inspirar forte e, de repente, tudo mudou.
- Melhor irmos
mesmo…. Já viu o que será se nos virem aqui? – Pronunciou com uma ponta enorme
de sarcasmo brotando dos seus lábios que me fez arrepiar por dentro e me deixar
totalmente irritada.
Quem
ele pensava que era para me virar as costas dessa maneira? Como é que ele me conseguia tirar do sério, conseguindo ser também aquele que me punha eufórica,
feliz, entusiasmada e, bem… louca por ele?
Afastei os
pensamentos enraivecidos e sentei-me de costas para ele.
- É melhor mesmo. –
Concordei secamente com o olhar fixo no azul-escuro de um céu estrelado e tentei
acalmar o meu pobre coração que teimava bater desordeiramente.
Vi aquele silêncio
constrangedor meter-se entre nós e transpor-me a pele de forma absurda,
deixando-me instantaneamente inquieta. Respirei fundo e tentei cantarolar
apenas na minha mente «Let me go home» de Michael Bubley para me convencer que
não iria conseguir pensar nas duas coisas ao mesmo tempo. Não resultou.
Vi-o sair primeiro
e atando a corda em que á pouco havia tropeçado a uma base de ferro junto ao
passeio. Saí logo a seguir, tentando ao máximo não me desequilibrar e ter
necessidade de pedir ajuda para me segurar.Ajeitei a bolsa no ombro e assim que vi que ele havia terminado o nó e se
levantado, comecei a caminhar de cabeça baixa em direção ao seu carro sentindo
e sabendo que ele caminhava também logo atrás de mim.
Ponderei o tom de
voz em que deveria falar depois de todo o tempo de silêncio. Não sabia como me
despedir dele depois de estarmos chateados. Eu acho que nem respirar eu
conseguia mais.
Parámos junto ao
carro e tirei o casaco, virando-me para ele.
- Obrigado pelo
casaco, ahn… esteve mesmo frio. – Desviei o olhar para o chão por um momento,
com medo que não me conseguisse soltar mais – Boa noite David.
- Onde vai? –
Perguntou mesmo sabendo para onde tencionava ir, sozinha.
- Para casa, onde
havia de ser… - Não consegui evitar e fui seca com ele.
- Entre no carro. –
Disse de forma firme, pouco autoritária mas nem de longe pedindo.
- E porque eu deveria
fazer isso? – Abordei de forma sarcástica. Mas será que ele pensava que eu
fazia tudo o que lhe apetecesse que eu fizesse? Bem, talvez noutra situação eu
fizesse sim, mas não agora.
- Porque a Rita e o
Rúben não merecem que você lhes estrague a noite. – Com os seus olhos fixos em
mim, David deu um passo na minha direção e entregou-me o casaco de novo. – Nem
tudo tem a ver com você.
Eu estava
paralisada. Era a primeira vez que discutia com David asserio. Era a primeira
vez que o via falar assim. Se fosse com outra pessoa, provavelmente ficaria
irritadíssima e pronta para iniciar uma discussão acesa com tudo a que tem
direito, mas não era. Era David, o homem por quem estava apaixonada e que nunca
me havia feito conhecer esta sua faceta. O
pior? Ele continuava sexy demais.
- O-ok. – Gaguejei
ao tentar falar e afastar os pensamentos que se apoderaram da minha mente ao
mesmo tempo. Eu ficara maluca, só pode… Porque naquele momento a minha cabeça
viajou, e até aquela postura séria e o olhar cravado em mim me despertaram
desejo.
Olá terráquias lindas! É, eu não morri nem nada parecido...
Quero dar um pedido de DESCULPAS enorme por só postar agora, depois de tanto tempo.
Qualquer coisa num ataque de vontade de escrever fez com que me dedica-se um bocadinho à história e acabasse esta parte do capítulo. O que não sei dizer é quando voltarei a postar, mas com certeza não será num período de tempo tão extenso.
Beijinhos e Bom Natal!
Ana Sousa*